Eu tenho sido para muito amigo,

Eu tenho sido para muito amigo,
Qual velho rancho, à beira de uma estrada,
Onde busca o viandante, à noite, abrigo,
E de onde parte pela madrugada.


Parte. O sol o protege. A caminhada
É suave. Nem mais sombra de perigo.
Canta, e nem olha para trás. E nada
Leva das horas, que passou comigo.


Mas que há de se levar de um pouso aberto?
Ei-lo que se escancara no deserto:
Entra-se; faz-se fogo; arma-se o ninho;


E lá se deixa, quando a noite passa,
Um bocado de cinza e de fumaça,
Dentro do rancho à beira do caminho.

Voz Íntima

Fecha-te, sofredor, na alva túnica ondeante
Dos sonhos! E caminha, e prossegue, embebido,
Muito embora, na dor de um fiei celebrante
De um estranho ritual desdenhado e esquecido!


Deixa ressoar em torno o bárbaro alarido,
Deixa que voe o pó da terra em torno... Adiante!
Vai tu só, calmo e bom, calmo e triste, envolvido
Nessa túnica ideal de sonhos, alvejante.


Sê, nesta escuridão do mundo, o paradigma
De um desolado espectro, uma sombra, um enigma,
Perpassando sem ruído a caminho do Além.


E só deixes na terra uma reminiscência:
A de alguém que assistiu à luta da existência,
Triste e só, sem fazer nenhum mal a ninguém.

A Estátua e a Rosa

Pelo soco de pedra, ao sol da manhã branda,
vê a estátua enroscar-se uma rama espinhosa.
Qual se a vida animasse a votiva guirlanda,
entre as flores de bronze expande-se uma rosa.
Milagre natural, mimo da primavera,
entre as formas e a cor a atenção lhe reparte.
E' o trevoso mistério onde à vida se gera,
a florir no esplendor de um leve sonho de arte!
Mas a rosa, soerguendo a corola orvalhada,
Soluça a mágoa atroz que a alma de flor lhe corta:
- "Tu, por homem mortal concebida e talhada,
tu não morres, estátua! Eu amanhã sou morta.
O meu viço é agonia. Um fado bem diverso
te assegura uma vida esplêndida e tranquila.
O sol, meu pai e algoz, juntou meigo e perverso,
ao vigor que me exalta o mal que me aniquila..."
E a estátua respondeu:
- "Rosa, invejo-te a sorte.
A glória de durar é uma longa miséria.
Que ironia, viver, engolfada na morte,
a vida vã da forma e o sono da matéria!
Eu provenho de um sonho e essa flor de poesia
só dentro da alma brota e fenece onde medra.
Em nascendo, tornei-me a carcaça vazia.
da ilusão que tentou eternizá-lo em pedra.
O sonho é um torvelim sem medida e sem norma;
é um latejar de vida, onde fervente e amarga.
A obra de arte, ao sair da mão que lhe dá forma,
é a vasa densa e vil que a onda, refluindo, larga...
O sonho de beleza, esse estado de graça,
não se fixa jamais, move-se como a vida.
A obra surge e resplende. Ele prossegue e passa.
E a obra viva e perfeita é a que não foi concluída...
Um dia serei pó. Tu viverás, rubente,
enquanto o mundo rola ao sol de ouro que te ama.
Tu sim, reflorirás indefinidamente,
com essa forma, essa cor, asse orvalho, essa flama.
Tu sim, és imortal nessa fragilidade.
Tu sim, ostentarás, pelos tempos em fora,
a perpétua frescura, a eterna mocidade,
à luz de cada aurora!"